oo! (ou o quase-infinito)

dois amigos de longa data, em um dos semquereres da vida, se encontraram numa noite estrelada de desejos que arranhavam o céu. ele, um apaixonado incurável pela vida e por formigas em metáfora. ela, dona de um sorriso que mostrava que toda sua quietude tinha um motivo óbvio. tão óbvio que ninguém sabia, porém. a relação entre os dois era como o antônimo de uma unha arranhando um quadro-negro e todos que podiam notar isso tinham uma inveja boa, bonita e sorridente ao vê-los imersos mundo tão siamês. ele estava imensamente feliz em encontrá-la assim, no acaso que regia sua vida, num lugar imensamente bonito, ainda mesmo quando coberto pelo manto da noite que tudo enegrece. dizem por ai, em bocas populares, que a beleza é algo que se dá além dos olhos. isso era particularmente certo para essa noite em que nada se via além do brilho da lua crescente regendo as estrelas em constelações de acordes diminutos.

nesse longo silêncio inicial, os olhares dos dois intercalavam entre a imensidão interna dos negrolhos e a imensidão externa do negruniverso.

após terminarem de observar os infinitos, decidiram se sentar na grama, num acordo silencioso que duraria até a hora de acordar novamente.
começaram então a falar das coisas banais da vida. falavam, porém, da forma menos concreta possível. sabiam por empirismo que tudo o que é solido se desmancha no ar e que a única tarefa do ar é cuidar de si mesmo. por isso conversavam em sussurros, para que pudessem enganá-lo e fazer com que suas palavras se eternizassem em leves brisas.
as pessoas ao redor olhavam com o rabo-do-olho-de-gato-pardo tentando saber o que raios tanto falavam. em vão: o ponto-cego da despoesia de seus olhos impedia que enxergassem seus decassilábios se mexendo.



foram três dias e três noites conversando.
falaram sobre tudo, sobretudo sobre falar sobre as palavras. e em sóbrias palavras disseram aquelas que mais gostavam:
-ensimesmado - disse ele em oposição ao seu estado de espírito.
-disgusting – escolhendo um anglicismo por pensar além.
-quiçá – percebendo que adorava aglutinações de palavras e de pessoas.
-oo!
-?

após uma pausa semibreve ela se viu obrigada a explicar esse último algo que disse: era uma expressão de espanto. algo como “ô loco!” ou “minha nossa!”, misturado com uma leve dúvida sincera de “é sério?”. tudo isso dito com uma entonação bem peculiar de papagaio.
ele adorou e, mais que isso, adotou a expressão para usar em momentos de interjeição peculiares.
as palavras continuavam a se movimentar numa transfusão recíproca e as noites e os dias continuavam passando em ciclo, sem se repetirem, porém.
entre sorrisos e aranhas que passeavam ao lado ele disse, num momento de epifania:
-você tem dez minutos e trinta e sete segundos pra me dizer algo que nunca disse a ninguém.
ela, em sopetão, emudeceu e sorriu. sorriu com o mesmo sorriso que fez com que ele se apaixonasse em segredo alguns anos antes.

num silêncio confortável eles se mantiveram até o fim do prazo estipulado. sem titubear ela contou da forma mais singela possível sobre um caso de amor que tivera num verão anterior e que ninguém havia sabido até então.
-eu gostava dele, mas ele gostava da minha amiga também - disse, sem perceber que ele a admirava pela sinceridade em suas palavras ao mesmo tempo em que observava algo que havia perdido há muito: a inocência. ele gostava do jeito quase-infantil que ela usava pra ser.
é preciso muita maturidade e destreza para se manter com a alma lisa de um bebê em tempos de chocolatentações.

eles riram juntos. o que ela havia dito não era um grande segredo, muito provavelmente fora algo quase insignificante em sua vida, e por isso não contou a ninguém. não pelo sigilo, mas pela falta de memória. apesar disso, ele se sentia extremamente comovido por saber de algo que ninguém mais sabia e se perdeu em nuvens de devaneios enquanto ela continuava a falar. a conversa continuou a fluir naturalmente, mas ele já não estava mais lá. é impressionante como a mente humana funciona, basta um grão de areia pra já pensarmos em oceano.

até que em um dado instante ela disse um algo inesperado, o trazendo de volta a esse mundo.
-agora é sua vez, me diga alguma coisa que nunca disse a ninguém.
-oo!
a expressão recém-adotada coube perfeitamente naquele instante. e agora? ele caiu em seu próprio jogo inocente e nunca tinha pensado a esse respeito.

apesar de tudo, apesar de nunca ter pensado nisso, ele saberia muito bem o que dizer. mas como dizê-lo? a amizade dos dois era demasidamente preciosa pra ser levada à borda do abismo. dizer que estava apaixonado por ela seria perigoso demais, era quase certo que escorregariam. o silêncio se instaurou e durou um dia inteiro. ele na indecisão e ela na expectativa.

ela sabia das coisas. sabia por observar sempre ao longe tudo o que ele fazia. e ela esperava que ele dissesse o que já havia sido dito sem palavras durante uma vida.

os dois estavam deitados no chão de olhos fechados. suas mãos quase se tocavam. e nesse quase-tocar, trocavam o calor da proximidade do que ainda não é. como aquela sensação do espirro iminente. aquela agonia que precede a meleca.

era assim que se sentiam. ele não conseguia pensar em outra coisa pra dizer. ela não queria que ele pensasse em outra coisa pra dizer. então, finalmente, alguns instantes antes do fim-da-madrugada quando o primeiro pássaro alçou voo para anunciar a chegada dum novo dia, ela disse aquilo novamente, em uma ansiedade que nunca foi dela. aumentando ainda mais a tensão:
-então... diga algo agora que você nunca disse a ninguém.
-eu faço xixi sentado! - (silêncio) – sabe? é mais higiênico...
era isso. era assim que ele ia ia impedir o infinito de acontecer, deixando que as partes partissem sem a declaração, sem o elo. com uma imagem ridícula de si. mas com o sorriso de quem ele mais gostava de ver sorrir.



e então nasceu o dia.

Comentários

  1. Poxa, é teu Uiu? Leitura prendada de doçura. Adorei! Mas, venha cá, amor woodstock? Três dias, três noites & uma vida inteira ritmando os corações selvagens? :*

    (outra coisa: leia 'A Mensagem', conto de Clarice L.)

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  2. oo!

    ...

    Li todinho, num sorriso só. Adorei os sussurros eternizados em leves brisas.

    (e lembrei dos horários malucos que vc marcava... eram sempre "tralala" horas e 17 minutos. E se atrasasse um minuto, levava um soco, se atrasasse dois, ganhava dois pirulitos - acho q esse acréscimo foi meu, duvido q vc se lembre).

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  3. lógico que lembro.
    você era a única q entrava nas minhas brisas e as piorava.

    lembro q, se chagasse 3 minutos atrasado ganhava um abraço

    e lembro dos sonhos amassados na testa, da aposta dos textos.
    [/interno]

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  4. teu testo envolvem... há coisas na vida que, quase literalmente, me derrubam por dentro. meu coração, por exemplo, está no estomago a uma hora dessas. conforme ia lendo, ele ia abaixando cada vez mais. é uma sensação física estranhamente boa. como as famosas borboletas na barriga. mas isso geralmente acontece quando se apaixona. agora, por um texto? uashusahas isso é engraçado
    os livros precisam de uma dose de uiu-uiu
    não poderia chama-lo de texto, então, direi que esse poema é leve. é lindo de ler.
    isso aconteceu com você? algumas coisas que li senti como se viessem verdadeiramente de você. verdadeiramente eu quero dizer, algumas coisas lá não são tuas, elas são você.
    tipo, uiu-uiu é um oo! ahsuhsasauhasuas

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  5. é bonito, uiu.
    o texto todo me soa 'quase'.
    e diz um moço que estou apaixonada por ler que 'idéias claras são idéias mortas e acabadas'.
    ele também diz que está na base de toda poesia um espírito de anarquia profunda.
    (ah, o moço chama Artaud).

    é, não precisa de clareza e explicação. precisa é da ponta do segredo. como certos silêncios, transbordantes de obviedade intuída.

    tudo isso me faz pensar que a poesia é o inverso da publicidade.
    a poesia escrita em papel e a poesia inscrita no cotidiano.

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  6. as palavras mesmo já são sólidas demais.

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  7. seu texto prende... queria escrever como vc... mas me contento em lê-lo.

    adorei a agonia que precede a meleca... é um espirro, mas pode ser uma declaração mau sucedida...

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  8. uiu, é um doce ler o seu texto, é leve.

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  9. gostei muito dessa coisa de "o sorriso de quem ele mais gostava de ver sorrir". e isso tudo é muito piracicabano, o casal bem que poderia ser jacq e tales, exceto muitas coisas. mas essa coisa do "oo" está no dicionário caipiracicabano (veja você que coisa mais brega), precedido pela definição "expressa todos os sentimentos humanos", acho muito bom!

    gostei, uiu.

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  10. Adorei Uiu, parabéns!
    Algumas vezes, vi a Luna comentar sobre seu talento, mas ainda não o tinha explorado; enfim, o explorei, devorei, como uma taça de sorvete, me lambuzei, como uma criança!
    Larissa

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  11. Não sei nem o que dizer...Como comentar este texto sem parecer uma mãe orgulhosa lambendo a cria???Sem parecer,não! Assumo: Sou uma mãe MUITO orgulhosa lambendo a cria!
    Que texto lindo!Que leveza, que imagens, que metáforas, que frases lindas que,de agora em diante, farão partedo meu caderno de anotações importantes e do meu viver!
    Você é um perfeito artesão na combinação/fusão/criação de novas "jóias"(palavras).
    Desculpe-me por ter demorado tanto para ler e comentar

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  12. (cont)
    Ler este texto foi como um bálsamo para minhalma!

    OO( ou infinitamente extasiada !)

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