elefantes (ou o tamanho de deus)

menos zero -0
o espetáculo dos elefantes havia sido na semana anterior, porém, era dificil de esquecê-los. o cheiro de estrume ainda rondava o ambiente e o vazio que a ausência deles deixava era quase maior que os próprios animais. todos tiveram a oportunidade de vê-los na sala de estar, camuflados na cortina; no banheiro, escondidos na banheira; no quarto, dentro do armário das camisas. em meio a brindes e copos vazios todos sorriam com a alegria e a elegância do olhar triste e desengonçado dos elefantes. havia cor, muita cor, vermelhos intensos, padrões verdes sobre verde, listras azuis-marinho e brancas. e todos tinham acesso a pincéis e tintas. alguns estavam ali para admirar, outros queriam sentir o prazer dos pincéis feitos com pêlos de orelha de boi passando sobre a pele enrugada e cheia de nostalgia dos elefantes.
porém, sempre havia aqueles que traziam suas facas de casa e, entre uma conversa e outra, no escuro do ambiente, raspavam pedaços de marfim para depois usarem a metáfora das carreiras bem sucedidas e cheirarem suas ganâncias.
no banheiro um casal jovem conversando prudentemente sobre ratos afastou um dos elefantes deixando o ambiente livre para suas imprudências joviais...


menos um -1
na hora da saída o caos estava estabelecido. apesar dos vários esbarrões, estava proibido qualquer tipo de menção ao verbo "trombar". tanto pelo infame trocadilho quanto pelo fato de que os elefantes não queria ser lembrados de que se sentiam uma aberração.

menos dois -2
os elefantes eram animais grandes com uma pele estranha, duas presas ao lado da boca, orelhas grandes e um rabo curto. tinham uma memória incrível e eram muy venerados por algumas pessoas.
eles eram facilmente encontráveis no ambiente apesar de camuflados. era só ter um pouco de força de vontade.
quando isto, as pessoas se ajoelhavam diante deles e não conseguiam ver mais nada além...


menos três -3
o ambiente estava quente e eram as orelhas dos elefantes que regulavam a temperatura.
é tudo relativo.


menos quatro -4
havia um artista na sala. o único que não comia e não conversava com ninguém. trazia consigo o seu lápis e alguns papéis caros. sentava-se em posições estranhas (provavelmente pra chamar atenção) e fazia caras engraçadas.
ele se posicionava estrategicamente entre as pessoas de paletó e as pessoas de chapéu, ficando longe das pessoas sem paletó nem chapéu. sabia que assim era melhor, pois as pessoas de paletó protegiam seus corações e poderiam sentir seus desenhos com mais ênfase. as pessoas de chapéu protegiam seus cérebros e assim poderiam fazer a semiose de seus traços. já as pessoas sem paletó nem chapéu estavam ocupadas demais admirando os paletós e os chapéus dos que tinham chapéus ou paletós.


menos quatrovirgulacinco - 4,5 (adendo necessário)
o artista era o único, também, que tinha, ao mesmo tempo, um chapéu e um paletó.


menos cinco -5
havia três cegos na sala e, contrariando as expectativas, quando cada um tocou em uma parte do elefante, não discordaram que era do mesmo animal que falavam.
os cegos não usavam nem chapéu nem paletó nem calças. achavam que ninguém que ali estava podia ver, deixando assim seus pudores guardados em casa junto com suas roupas cheirando a mofo.
os cegos podiam sentir a tristeza dos elefantes com suas mãos. "eu não pedi pra nascer assim" dizia o primeiro cego sobre o que ouvia de um dos grandalhões pela sua pele e pêlos. "odeio ser desengonçado", dizia o segundo cego traduzindo para todos o que escutava com suas mãos no elefante. "queria que todos pudessem realmente me ver, mas são todos cegos", gritou o terceiro cego sem perceber que, na verdade, tocava um espelho.


menos seis -6
com o vento, uma folha de papel caiu no chão. ninguém riu, temendo a deus.


menos sete -7
a comida já estava servida: amendoins.
todos esqueciam das regras da etiqueta quando tinham fome - "cinco minutos de festa sem nenhum tipo de alimento é inadimissível", cantavam em coro - e comiam vorazmente. a cada punhado de amendois um gole num licor barato para que a comida descesse mais rapidamente e assim pudessem alimentar mais ainda sua gula ao mesmo tempo que embebedavam-se em homenagem aos elefantes magros e camuflados pelo ambiente.


menos oito -8
um senhor magro com calças engraçadas e um bigode fino e assimétrico havia estendido a lona e armado o picadeiro na dispensa na noite anterior, os participantes foram chegando e, um a um, agradeceram os convites feitos com dez minutos de antecedência. "o mundo gira muito rápido", diziam eles. metade dos covidados faltaram ao encontro por estarem preocupados demais com a falta de ocupação que os assolava todas as noites. passavam horas procurando em seus diários (vazios por representarem fielmente seus dias) as respostas pras perguntas que viriam a fazer amanhã.

menos nove -9
era noite, e tudo era silêncio, exceto os bramidos dos elefantes que estavam chegando e que, em euforia, se esqueciam do seu passado.

Comentários

  1. Gostei muito das sacadas do texto. A parte dos diários e do cego com espelho são geniais! O enredo tá bem criativo também e, não sei explicar a razão, na minha cabeça as cenas, a cada novo menos algo, alternavam entre coloridas e escuras (doideras de minha parte, creio)
    Com certeza, vou ler várias vezes este post. Gostei muito.

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  2. Uiu... Minha psicóloga disse que sou um elefante.
    Verdade! - Sobre ela ter dito. Eu efetivamente, continuo na humana condição de ser Karina- menos 10.

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  3. Uiu...lemúrias de Uiu...a cada dia que passa percebo sua leveza ao escrever e ao mesmo tempo um mistério..rs...é engraçado isso...mas acho que é justamente esse mistério, essas reticências da história que me fazem voltar aqui e novamente apreciar seus belos textos!! Parabéns!

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  4. Não pare de escrever, nunca!

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  5. o texto ta ótimo, e digo isso baseado no fato de que uma boa leitura deve nos remeter àquele lugar/sensação. Gostei muito.

    beijo,iupi.

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  6. putezgrila....





    ..e tenho dito.

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  7. vim ler-te no momento mais ameno destas 34h de invernos sucessivos. e mesmo não sabendo ao certo o que iria encontrar, acabei por estar onde queria. e isto é bom: saber onde ir quando se perde a memória...

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  8. incômodo. a sensação é: uma blusa feita de uma lã que pinica. e ainda por cima com etiqueta que faz coçar.

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  9. Estranho como seus textos sempre me deixam com um sorriso triste e um vazio... e ambos são sentimentos que, sim, deveriam ser ruins, mas não são.

    Minha memória nunca foi boa, então mal li e já esqueci as exatas palavras que você usou. Mas ainda sinto a essência delas pulsando dentro em mim, e isso não vou esquecer tão cedo.

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  10. oi uiu,
    que beleza de texto!
    eu uso chapeu e paletó e li suas palavras com o coração a vontade. os cegos foram tão confusamente esclarecedores pra mim, que acho que virei aqui novamente para revê-los algumas vezes na vida. sua metaforas são metadentros quando se lê com chapeus...
    que bom entender que no mundo das palavras tem pessoas como vc.
    obrigada por dividir e confiar, meu amigo querido.

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