vão (ou Sobre o que sobra)

E da janela viam-se pássaros.
Poucos, escassos, mas pássaros.
Pairando sobre um cheiro de não-sei-o-quê.

Bom, isso era o que dizia a criança, que cresceu vendo os pássaros amigos, e hoje tem medo deles. Pássaros pretos que escrevem linhas de tristeza no livro de suas histórias.
Pássaros rápidos que passam a borracha em todas suas glórias.
O quintal ainda é de terra, e lá essa criança brinca pra esquecer. Tão poucos anos e tanta coisa em sua memória. Tanta coisa ruim. Só de pensar que um dia achou o canto dos pássaros agradável e hoje acha ensurdecedor.

A raiva é muita, e se sentir impotente só piora.
Ela pega seu estilingue. Mira lá, bem longe, no pássaro. Põe todo o seu sentimento naquela pedra. O seu desejo é a força que ela põe no elástico, fecha os olhos e solta...
A pedra vai, vai... e cai.
A criança continua de olhos fechados. É criança mas sabe da verdade. Já tem pensamentos de adulto. E pra fugir disso cria seu próprio filme na cabeça:
(
a pedra acerta o pássaro-do-mal, a poeira baixa e o sol volta a aparecer. É o fim.. o fim não... é o recomeço... ela era o herói, sua cabeça já não dói mais. Vai para perto do lago e se vê de olhos fechados... chega mais perto da borda...
)
... abre os olhos e acorda. Os pássaros ainda estão lá. Mais pesados ainda.

Como tudo pode ter mudado assim, só por causa de um não?







(aqui, a lacuna de seus anos esquecidos)






hoje,
o seu quintal ainda é de guerra e lá essa criança brigou pra não crescer. Tantos anos e tão pouca coisa em sua história. Tão pouca chance, enfim. Só de pensar que um dia achou o canto dos pássaros agradável e hoje não acha mais nada.
Marchou para seu exército, cantou sua glória, lutou pela história.
E hoje, o canto que cobre o manto é o de outra marcha
...a fúnebre.





(aqui, a lacuna de seus anos não vividos)






Ah sim.... agora eu sei. O cheiro era de gente. Gente morta.
Morta pelos mesmos pássaros que transportam gente. Gente podre.
Mais podre do que os mortos um dia vão ser.
Mortos que vão pro vão em vão.

Comentários

  1. Não foi feito nenhum comentário até agora.

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  2. Muito bem escrito e profundo.

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  3. gabi ortega5/10/09 1:48 AM

    emociona, e muito.

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  4. Sempre adoro seus textos. São cheios da felicidade triste mais feliz. =)

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  5. lindos textos..e mto tristes por sinal,fazem em mim uma incrível sensação de deja vú...
    simplesmente terrific

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  6. O blog ta muito bonito!
    E pássaros voam, nós não! Viva a grande inveja humana!

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