fome (ou Assalto à mão amada)

Era a véspera de algum feriado importante. ele não sabia ao certo qual. há um incerto tempo tinha perdido a noção do mesmo. sabia, porém, que era a véspera-de-algum-feriado-importante por ver a agitação das pessoas nas ruas comprando coisas e se preparando pra ir a algum lugar que não aquele onde elas estavam. procurando algum objeto que agradasse e fizesse sentir que estavam vivos. procurando mais ainda alguma figura de cerâmica ou pedaço de papel supervalorizado que pudesse preencher sua ausência na vida de alguma outra pessoa. ele, porém, não tinha nada nem ninguém.
tinha fome e isso era visível.

a fome era uma sensação estranha. era como se seu corpo em sua inevitabilidade de ser procurasse uma forma de mostrar que ainda existia sua vitalidade, sua energia vital, sua vida. tudo era devir naquela situação. tudo era possibilidade. a fome era esperança da saciedade futura manifestada num presente inexistente.

a fome era a véspera.

e ele sabia que, apesar de tudo, esse era o melhor sentimento que poderia ter naquele instante. ele gostava da fome. gostava desse impulso. desse pulso de vida sem muita razão. e foi assim que decidiu:
pegou sua arma e se dirigiu até a casa dela. sabia que lá podia encontrar o que procurava no limiar de sua sanidade.

já era fim de tarde, e o dia estava naquele exato momento em que a sua sombra parece dez vezes maior que você e que aponta para frente. para lá, onde ela já está e você ainda não pensou em chegar.
a cada passo ele sentia o seu sorriso aumentando. sabia que já havia quebrado todos os paradigmas da sua vida. sabia que ja tinha jogado tudo ao vento, tudo o que havia inventado. que não havia sensação melhor que essa: a liberdade conquistada, não imposta. e não importa o que dissessem ele sabia que só podia fazer o que seu corpo pedia. era essa a lei. não havia certo e errado.
a cada passo ele sentia sua fome aumentando. como passos em uma escada muito alta que ensaia te jogar pra baixo caso você fraqueje. e ele não podia desistir agora. com todo aquele sentimento ele só podia existir.

sabia o caminho de cor, era um caminho que ele havia descoberto há pouco mas que sabia antes de conhecer.
tocou a campainha com dedos trêmulos e esperou a maior espera de sua vida. maior que toda a sua véspera.
ela abriu a porta, linda como sempre, e sorriu. sorriram juntos. sorriram e ficaram um bom tempo em silêncio. como se pensassem em uníssono.
(não há nada aqui que possa ser descrito nem entendido sem que haja uma descrição.)
ele decidiu então falar.
após ensaiar algumas palavras belas e ameaçadoras, sem muitas delongas, ele disparou, fazendo um círculo sutil vermelho e delicado no peito dela.
ela então sentiu o que ele sentira por todo aquele tempo, sentira a sua vida passando. sentira a véspera do inevitável. lembrara de todos os sonhos que tiveram sido afogados desde sua infância até o exato momento. e sabia que ali um sonho novo estava se realizando. denovo. sentiu a fome que ele sentiu e percebeu que ela havia se enganado por todo esse tempo com guloseimas pra forrar-o-estômago. sentiu então o amor. aquele amor que respingava em seu peito causado pelas belas palavras bélicas.
ela decidiu tomar a arma de sua mão e sem muito ensaio nem jeito disparou de volta.

e o tempo parou em volta.

ele, agora, não sabia de mais nada.

Comentários

  1. Nossa, gostei muito! Super fluido, não conseguia parar de ler... e um desfecho que não fecha...

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  2. (e como sempre acho muito legal suas expressões-neologias! =D)

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  3. se pá me arrepiei...

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