Retorno (ou agridoce)

Dos três que se encontram naquela sala apenas Arquimedes, o gato, parece se divertir com aquilo tudo. Pula de “torre” em “torre”, explorando as pilhas de caixas de papelão empilhadas pela sala. Logo o felino se enjoa de toda aquela aventura e deita-se preguiçoso no seu do canto predileto do sofá, bem onde bate uma faixa de luz do sol no fim da tarde. Era também meu lugar preferido.

Outro fato que o gato deve estar adorando é que, finalmente, o silêncio habitual voltou a reinar após um mês inteiro de turbulências repentinas. Se fossem contínuas, Arquimedes já teria se acostumado e cochilaria tranquilo. Mas não era assim, ele sempre se assustava com aquele imprevisível caos, aquele súbito levantar de vozes e gritaria que começavam e terminavam por mil motivos banais, nenhum deles “o” real.

Eu já sabia há um tempo que iria acontecer. Após anos de convivência harmoniosa, de repente ele começou a implicar com qualquer coisa, até mesmo com as minhas habituais implicâncias e tudo era motivo para brigar – toalha molhada em cima da cama, divisão desigual de tarefas domésticas, contas a pagar, freelances (os meus, já que os dele eram sempre considerados bem-vindos, enquanto os meus “atrapalhavam nossos interessantes planos de final de semana”, como se ir ao cinema ou ao restaurante chinês fosse assim tão empolgante).

Não posso fingir que não tenho culpa nisso. Irritada por saber que ele escondia algo, eu também me agarrava com unhas e dentes em qualquer motivo que fosse para discutirmos. Para esquentar nossa relação, criamos um pequeno incêndio, cujas labaredas eram alimentadas continuamente com nossas juras e promessas de amor, planos e tudo aquilo que nos unia. Quando até o respeito foi consumido pela pira que criamos, ele finalmente decidiu que era hora de ir embora.

O apartamento era meu e não éramos casados, então tudo se resumiu em juntar os pertences dele, encaixotá-los e esperar a carona de um amigo em cujo apartamento ele se hospedará até arranjar outro lugar.

Talvez ele tenha pensado que haveria mais discussões bobas sobre quem ficaria com o quê, mas deve ter se frustrado. Eu já não tenho mais forças para brigar e, no fundo, adorei pensar que aquela mesa de centro que compramos juntos sumirá de vez da minha vista. Não quero nada que me lembre dele.

O problema dos homens é que eles não sabem disfarçar. Era óbvio que não foram as toalhas, a louça ou as contas que o fizeram me deixar. Embora ele sempre negasse, eu sabia que tudo tinha a ver com uma certa ruiva de voz levemente rouca, bonita e muito mais nova, sempre presente nas fotos dos eventos de quadrinhos a que ele ia todos os anos – e que, quando eu ainda não era diretora de arte, o acompanhava com prazer. Tenho orgulho dos quadrinhos independentes que ele escreve, enquanto ele sente desprezo pela agência em que trabalho. Já era tarde quando percebi.

É estranho pensar, ao ver as caixas empilhadas no meio da sala, que anos antes aquela mesma cena acontecera, porém pelo motivo oposto. Havia esperança e achávamos que unir nossas vidas sob o mesmo teto aplacaria as pequenas diferenças que já começavam a ruir nosso relacionamento. Queríamos tapar com argamassa e três mãos de tinta todas as pequenas rachaduras, que já eram visíveis na fachada da casa. Pensando melhor agora, a ruiva era apenas uma das diversas outras ranhuras já existentes. Ou talvez nem isso.

Ele ainda tenta, vez ou outra, comprar briga. Talvez se sinta culpado, talvez queira que eu dê motivos para que ele me abandone assim, desse jeito, sem me explicar direito o que se passa dentro dele. Eu não tenho o direito de saber, já que não sou mais protagonista de suas histórias. Não sei se um dia já fui. Não sei se a ruiva atualmente é.

O pior de tudo, porque sempre tem como piorar, é que eu realmente o amava. Ou melhor, eu amo aquele filho da puta, que nem se digna a me contar a verdade. E talvez seja o único cara que eu realmente amei, mas não volto atrás nem que pedisse, implorasse e me prometesse novas tolices. Ilusão minha, ele nunca o fará.

Ele é uma viagem boa, daquelas que a gente planejou e esperou a vida toda para fazer. Quando a viagem finalmente se concretiza, nos sentimos mais do que felizes: ficamos realizados. O ar é sempre repleto de novidade, alegria e descobertas agradáveis. Tudo parece fazer sentido e se encaixar no lugar certo.

Mas não somos turistas eternos e um dia precisamos voltar. Quando percebemos isso, sentimos uma leve vertigem e uma precoce saudade do que está para terminar. Mas no fim somos sempre tomados por uma espécie de nostalgia e uma nova ansiedade, desta vez pelo retorno, pelo aconchego do lar que abandonamos pela aventura.

Apesar de tudo, é na nossa cama onde nos sentimos mais confortáveis e em que podemos relaxar de verdade. A questão nunca é “se a viagem vai acabar”, porque ela sempre tem um fim. O que me angustia é o “quando” e, ao descobri-lo, sinto tristeza e alívio: voltarei a dormir sossegada.

A campainha finalmente toca: é o Jonas, o amigo. Cumprimentos trocados em silêncio, o clima pesa e apaga de seu rosto um sorriso débil, daqueles sem sentido que damos apenas por educação. Logo estão os dois carregando as caixas para fora, e eu fingindo que seguro o gato para não ter de ajudar.

Tudo colocado no elevador, eu ainda sem sair do apartamento, plantada na porta e segurando Arquimedes no colo (me sinto um daqueles vilões de filmes ruins, arquitetando planos mirabolantes enquanto acaricia suavemente um gato gordo e peludo). A mesa acaba ficando comigo. Hoje não caberá no carro, talvez semana que vem ele volte para buscar. “Se eu estiver aqui”, quis dizer, para brincar, fingir que já tinha dado a volta por cima e tinha planos mirabolantes, mas não tenho vontade.

Não espero a porta do elevador se fechar, volto para dentro sem olhar para trás. Quero que ele veja em minha nuca minha força e meu orgulho inabalado, mesmo que eu tenha acabado de ser deixada para trás. Duvido que ele tenha captado isso.

No silêncio do apartamento meio vazio, permito-me a primeira lágrima cheia de dor, mas sinto também o paradoxal alívio: finalmente eu tinha voltado para casa.

Comentários

  1. eu acho que a culpa nunca é da primeira pessoa do singular

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  2. Boa, também não acho que é de nenhuma outra pessoa do singular, sempre é do plural. Ou talvez seja só do tédio mesmo.

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