Peixe morto (não conte a Ícelo)

Houve um tempo em que era necessário apenas um grito para que eu pudesse ter alguém ao meu lado. Às vezes, ao abrir os olhos, encontrava tudo escuro e sentia o abominável medo começar a comer meu corpo por dentro. Enchia, então, o peito de ar e deixava as lágrimas caírem livres enquanto pela garganta os sons corriam apressados até a porta do quarto de minha mãe. Em segundos as luzes se ascendiam e um abraço quente me calava, afugentando todo aquele monstro que me machucava internamente.
Foi a lembrança desses momentos que me fez levantar da cama e ir em direção à janela, já incomodado com presença da insônia e sem saber como expulsá-la de casa a fim de que eu pudesse ter meu merecido descanso. Fazia três dias que eu não conseguia dormir: pensei, de início, estar preocupado demais com a falta de dinheiro nessas épocas de desemprego, mas, posteriormente, concluí que me amedrontava a idéia de não ter ninguém a quem gritar caso meus olhos não vissem mais sinais de luz.

Ao aproximar-me, então, da janela e jogar as cortinas para o lado vi, com surpresa, feixes claros vindos de um declive ao final do extenso jardim de casa. Era esse um ponto que raramente freqüentava, pois havia ali, anos atrás, um antigo pomar cultivado por meu avô: só a lembrança do velho mexendo na terra já era o suficiente para me fazer chorar por horas, tamanhas saudades do morto. Após o câncer devorar o intestino do vô, meu pai, revoltado, foi até a plantação e ateou fogo em tudo, de forma que o denso lado verde e frutífero da casa virou um descampado cinza. Passado os anos, nada foi construído naquele pedaço, ao ponto de, hoje, o terreno ter como utilidade única servir de ninho de amor para meu irmão mais velho e suas mulheres.
Tentei em vão lembrar-me de alguma conversa com meus pais que justificasse as luzes vindas do declive. Em toda janta, a família se reúne na mesa retangular da sala. Inevitavelmente meu pai briga com meu irmão e minha mãe em decorrência de algum engano na empresa. Escuto calado até a empregada retirar os pratos e servir a sobremesa, sendo este o momento em que, sem falta, são traçados os planos para viagens que nunca faremos e de reformas na casa. Rememorei os últimos jantares tentando achar algum instante em que alguém comentasse algo sobre o antigo pomar, mas, caso isso tenha acontecido, não escutei: é comum distrair-me.
Como não tinha sono, calcei os chinelos para ir até o fim do jardim acabar com minhas dúvidas. Ao abrir a porta do quarto, deparei-me com o corredor iluminado, cheio de gente. Gordas senhoras trajando longos e decotados vestidos brilhantes conversavam escoradas na parede da frente. Usavam colares até o meio dos peitos que me deram dores nos olhos assim que os mirei. Eram gêmeas e conversavam com um sotaque do Sul.
Um garçom esbarrou-se em mim. Sem saber que era um dos donos da casa, gritou palavras estranhas fazendo gestos obscenos. O absurdo da situação me deixou apático. Não pude entender a ofensa e sequer vi quando o homem se afastou.
Percebi que, assim como as gêmeas, a maioria das pessoas presentes se vestia de forma elegante. Por estar de pijamas, fui tentado a voltar para o quarto e colocar uma roupa mais apropriada, mas, assim que dei meia-volta, um homem me empurrou.
- Ande em frente, não há nada para ver lá atrás.
Sem muito esforço, segui, pois parecia estar dentro de uma boiada. Quando percebi, encontrava-me na parte de fora da casa, próximo à churrasqueira. Cadeiras rodeavam o balcão onde meu pai colocava a tábua de carnes. Ele sorriu assim que me viu, piscando o olho direito enquanto mastigava um pedaço de pão. Havia muita gente por ali, sendo a maioria familiares que não via há tempos. Ao contrário dos estranhos do corredor, todos usavam roupas mais simples, de verão, excluindo, apenas, meu irmão, que se fazia presente de terno preto e gravata. Seus cabelos estavam penteados para trás; olhava-me sério, de forma penosa.
Senti um leve puxar de camisa; ao olhar para baixo, vi minha avó paterna sorrindo. Estava sentada com um prato na mão. Fez um convite para que me acomodasse ao seu lado, em uma cadeira desocupada de almofada azul.
Perguntei a ela o que estava acontecendo.
Ouvi se tratar de uma festa.
- Festa para quê?
- Para comemorar.
- Mas o que se comemora?
- O noivado de seu irmão.
- Não sabia nem que ele namorava!
- Pois precisa ser mais amigo dele. Assim se agrada a Deus.
- Quem é a noiva?
- Melina.
Lembrei-me, então, de minha ex-namorada. Há dois anos, não tinha notícias dela. Deixou-me em um restaurante com uma garrafa de vinho pela metade e uma conta para pagar. Sem conseguir explicar a razão, não me causou surpresa saber que estava ela noiva de meu irmão.
Serão felizes, disse a avó.
- Eu assim espero.
- Não lhe causa raiva?
- Não.
- Você é um bom menino. Assim se agrada a Deus
Levantei-me apressado e fui em direção a piscina. Estava nauseado. Passaram-se apenas algumas semanas desde que concluí ser ateu e causou-me um estranho mal-estar conversar com minha avó e pensar que, na verdade, não agravada ninguém. Corri tentando aliviar a tontura, mas percebi que, no fundo, fugia do niilismo.
Senti um desejo de estar só. Olhei ao redor e me entristeci com o ambiente repleto de gente. Procurei um lugar que estivesse vazio: meu olhar foi ao encontro do declive. Não havia ninguém naquela direção. Feixes de luz ainda saiam lá debaixo, me ressuscitando aquela curiosidade que me fez sair do quarto.
Quis correr, mas meus passos pesaram. Um estranho apito soou em meus ouvidos dando-me a sensação, por um momento, de estar prestes a desmaiar. Me movi lenta e cansativamente até a borda do antigo pomar, sentindo de forma intensa o impacto dos pés com o chão. Na beirada, deparei-me com uma escadaria que descia dois lanços. Dava para um pequeno jardim repleto de vinhas e orquídeas, que fazia entrada a uma casa alaranjada de dois andares disposta em forma de “C”. Cada andar era repleto de quartos ocupados por idosos, estando todos de frente a um pátio com vasos e estátuas de mármore ao estilo grego.
No jardim da frente havia um banco circular e nele estava sentada minha avó materna. Era a única que não tinha encontrado ao redor da churrasqueira. Desci os degraus me perguntando quem havia morrido: se era ela, minha avó, ou sua mãe, minha bisavó.
- O que faz aqui, vó?
- Estava vendo um quarto para morar.
- Aqui?
- Sim, nesse prédio. Só mora gente velha nele.
- Você não precisa disso, vó, pois tem a todos nós!
Ela sorriu para mim. Raramente sorria, ficando eu sempre muito feliz quando presenciava o seu mostrar de dentes: apesar da idade, ficava ela linda assim.
- Eu não conhecia essa parte da casa.
- Já faz um tempo que seu pai a construiu.
- Nem imaginava.
- Tem muita gente morando ali. Me acompanhe, quero te apresentar um senhor.
Levantou-se e eu a segui. Logo de frente ao primeiro quarto se encontrava um idoso de barba grisalha e cabelos brancos que lembrava um pouco o Hemingway. Tinha uma perna amputada e estava sentado de forma atravessada em um grande banco de madeira, sem encosto, cheio de farpas. Fomos apresentados, mas seu nome saiu de sua boca como vapor e antes de sabê-lo eu já tinha esquecido. Parecia-me um bom homem, apesar do sorriso não confiável.
Perguntou-me sobre a saúde de meu pai e pediu para avisá-lo que em breve pagaria o aluguel. Minha avó questionou algo sobre o vizinho de cima e os dois começaram uma conversa entediante. Sem pedir permissão, aproveitei o ensejo e entrei no quarto do homem. Era um cômodo simples com banheiro em anexo. Uma grande janela ocupava metade do lado esquerdo, enquanto a cama estava encostada na parede em frente à entrada, com um armário de roupas quase colado à sua beirada. Havia espaço, ainda, para uma poltrona, uma estante de livros e uma televisão antiga posicionada em cima de uma pequena mesa.
Interrompi a conversa dos velhos:
- É aqui onde mora mesmo, senhor?
- Sim.
- Mas e o espaço para cozinhar? Onde come?
- Ninguém aqui cozinha. Servem comida todos os dias no refeitório.
Fechei meus olhos imaginando como viveria em tal ambiente. Vi-me careca, enrugado, compondo músicas e pintando quadros como sempre sonhei. Estava decidido a sair de casa e procurar um lugar para morar sozinho desde que me formei. Olhei ao redor e percebi que não precisava de nada além daquilo que via no local. Senti paz e, pela primeira vez em anos, pareceu-me ser muito fácil viver e ser feliz.
Comecei a andar sentindo inveja de todos os velhos ali presentes. Uma grande agitação vinha de um cômodo do andar de cima. Olhei para o quarto em questão e vi um velho sem camisa a discutir com uma senhora de vestido e curtos cabelos. Parecia minha bisavó, mas percebi o engano quando lembrei-me de sua morte. Discutiam sobre a altura do som. O homem se levantou e, como se fosse algo comum, esbofeteou o rosto da velha, que revoltada, começou a gritar palavras em russo. Da janelas, casais assistiam a cena. Súbito, uma música começou a sair de uma porta aberta; todos os idosos do andar iniciaram um bate-palmas. O homem agressor rodopiou próximo a sua senhora.
Escutei um resmungo. Reparei em uma mulher me observando raivosa. Tentando ser simpático, apontei para o andar de cima e disse:
- Aquele casal é russo?
- Judeu.
- Mas falam russo.
- Não é russo, é iídiche.
- Jura? Como você sabe?
- Como não poderia saber?
Tinha razão: por que não poderia saber?
Ouvi alguém gritar meu nome. Olhei para trás e o senhor amputado vinha em minha direção em uma cadeira de rodas. Contou-me que a avó tinha se dirigido a festa. Agradeci-lhe. Afastou-se alguns metros, voltou a me chamar.
- Ei, moleque, quer conhecer um lugar legal?
- Claro, por que não? É tão bom quanto aqui?
- Quem foi que disse que este é um bom lugar?
- Ninguém, eu apenas sinto.
- Sente mal. Este é o pior lugar em que já vivi.
- Parece-me tão agradável.
- Pois você é um idiota. Ninguém em sã consciência gostaria de viver aqui.
- Talvez seja eu louco, quem sabe?
Olhei sem muita compaixão ao sósia do Hemingway: carregava muita raiva dentro de si.
- Se odeia tanto esse lugar, por que mora aqui, senhor?
- Rapaz, eu não tenho mais nada nessa vida, entende? Eu não tenho mais nada!
- Todos temos algo, senhor, nem que seja apenas a espera da morte.
Sorriu por um instante.
- É poeta, moleque?
- Não.
- Pois me pareceu.
- Por quê?
- Pois é um tolo.
Tive um desejo incontrolável de rir, como se as palavras relassem em minha pele fazendo cócegas. No entanto, bateu um vento em meu rosto trazendo, de carona, a gélida expressão do senhor. Congelei-me.
- Vá até meu quarto e pule a janela, você chegará ao lugar legal. Aproveitando a ocasião, me faça um favor: livre-se do que tem nesse saquinho.
Jogou-me um saco de camurça azul que apanhei no ar.
No quarto, fiquei de frente a janela. Um grande oceano se estendia rumo ao horizonte, juntando-se na ponta com o azulado céu de um dia quente. Pulei e caí em um deque espremido entre o mar e uma orla cheia de vendas e casas.
Dei algumas passadas em direção oeste perguntando-me o que havia acontecido para não perceber o raiar do dia. Encontrei uma criança bochechuda e fedida ao lado de um barril de madeira.
“Vigia para mim?”, perguntou-me.
Disse-lhe que sim e se afastou. Mirei dentro do tonel, vi que estava cheio de água. Uns pequenos peixes nadavam ali e faziam uma valsa da esquerda para a direita que me emocionou: repentina vontade de chorar.
Uma moça se aproximou e, tocando meus ombros, perguntou-me o que fazia com os peixes do irmão. Era tão bela que não pude lhe dirigir as palavras. O cabelo dourado, preso em coque, exalava um perfume que contrastou, em minha mente, com o cheiro de carniça da criança. Achegou-se mais, quase ao pé de meu ouvido, relando seus peitos em meu colo.
- Diga-me, de uma vez, o que faz com os peixes de meu irmão.
- Ele pediu para que eu os vigiasse. Foi para oeste, mas não sei o que fará.
- Provavelmente foi ver como está meu pai.
Apalpou o bolso do meu pijama e agarrou o saquinho azul que o velho me jogou.
- O que é isso?
- Não sei. Entregaram-me junto a um pedido de que me livrasse de seu conteúdo.
- E carrega algo sem saber o que contém?
- Sim, carrego. Também converso com pessoas sem nem saber quem são.
Sorriu e beijou-me a face. Já se afastando, disse:
- Quando Ícelo voltar, diga-lhe que o procurei.
- Quem é Ícelo?
- Meu irmão, aquele que pediu para que vigiasse os peixes.
- E como você se chama?
- Não se preocupe, isso não tem importância.
Um forte vento soprou do mar. Cerrei os olhos para não ter irritações. No barril, os peixes continuavam o bailar de um lado a outro como se não houvesse um mundo diferente daquele. Enfiei a mão na água e senti mordiscadas nas juntas. Devem estar com fome, pensei.
Peguei o saco azul, despejei seu conteúdo. Quando o pó dourado caiu e boiou na superfície da água, pequenas bocas começaram um banquete.
No céu, um pássaro grande gritou. Senti que alguém me observava por trás. Ao virar, dei de cara com uma mulher de cabelos bem curtos. Era extremamente branca, tendo o aspecto de uma estátua de gesso viva.
Disse-me para ter cuidado.
- Com o quê?
- Com os peixes.
Olhei para o barril e vi como os bichos tinham crescido com a comida, já quase não cabendo no recipiente. Comovido com o debater angustiado dos seres, fiz uma força para tombar o tonel. Um por um, os peixes caíram no mar.
- Menino, você realmente não tem sentimentos?
Olhei para a mulher com uma expressão que indicava o não entender de sua fala.
- Você acha que irão viver muito tempo assim?
- Não irão?
Vi uma lágrima cair de seus olhos. Na água, os peixes nadavam de um lado a outro. Senti que um deles me observava com um olhar de agradecimento. Quis acariciá-lo, mas podia cair dentro d’água caso tentasse.
Apontei para o agradecido e falei para a mulher:
- O que acha de chamá-lo de Alberto?
- É um bom nome.
- Gostou?
- Sim, combinou com ele.
Ouvi um forte e agudo grito no céu. Tudo escureceu e um cheiro de estrume tomou conta do ambiente. Olhei para minhas roupas, estavam sujas de fezes de pássaro. Tive uma tremedeira e um vômito saiu de minha boca em um jorro. Cai de joelhos. Quando levantei-me, olhei para a água e vi Alberto nadando sozinho.
- Onde estão os outros?
A mulher apontou para o céu em direção ao grande pássaro. Comeu todos, disse-me.
Desesperado, enfiei a mão na água e agarrei o sobrevivente.
- Precisamos levá-lo para algum lugar em que tenha mais chances de viver.
- Conheço um rio a Oeste em que nadam muitos peixes iguais a este.
Agarrou-me pela gola do pijama, começou a correr em direção ao local falado. Senti meu braço dormente e vi que estava congelando: Alberto era mais frio que o gelo.
O rio era grande, parecendo outro oceano de águas mais barrentas e escuras. Olhei para a superfície e pude notar peixes semelhantes a aquele que carregava nas mãos. Joguei-o para o alto, como se tentasse fazê-lo voar, e observei sua queda. Ao entrar em contato com o leito, seu corpo encolheu. Não tardou o momento em que emergiu boiando, cadavérico.
Disse à mulher:
- Pobre Alberto, não tinha a ninguém.
Olhou-me. Senti seu gélido hálito quando me dirigiu a palavra:
- A razão da vida é ter?
- Como?
- Ter. Ter alguém, ter trabalho, ter prazer: ter? É isso a vida?
- Não sei dizer, moça, sou apenas um tolo.
Juntou os braços ao corpo e pulou na água. Tentei detê-la, mas era pesada e por pouco não me arrastou junto a ela. Todos os peixes se dirigiram apressados ao ponto da queda. Gritei por socorro: sabia que iriam devorá-la. Olhei ao redor, mas não vi ninguém.
Gritei.
No horizonte, o grande pássaro voava imponente. Éramos, ele e eu, os únicos seres viventes acima da terra. Fechei os olhos. Quando os abri, tudo estava escuro. Não tive vontade de gritar: sabia que ninguém viria.

Comentários

  1. Ainda bem que você continua a escrever, ainda bem! Porque assim, bem como neste presente, o futuro será de gênios sensíveis de imaginação ativa e coração amplo como você.

    Que fique registrado para sempre o orgulho que tenho de você.

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  2. Cadê esses textos semanalmente hein???! :P

    Adoro mesmo sua escrita mas fica a pergunta: o quanto você se coloca nos textos? Insônia, desemprego, ex-namorada, russo...Hum...parece alguém que eu conheço!Rs

    Acho ótimo que tenha voltado a escrever! Continue com os textos, eu vou sempre ler! (mesmo que demore um pouquinho!)

    Beijos!

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