Voltando ao fundo (ou o sono eterno de Mítia)
Se eu dissesse que sabia onde estava, mentiria. Não sabia que lugar era aquele e nem como lá fui parar. Ao abrir meus olhos, após profundo sono, me deparei com um teto bege e mofado cobrindo aquele quarto de paredes revestidas com papel vermelho e florido. A aparência vampiresca do local me causou espanto de início, ao ponto de fazer o coração acelerar: ninguém de bom gosto poderia ali habitar. Cortinas grossas balançavam levemente com um vento frio que entrava por uma janela cobrindo toda a parede do céu ao chão e que deixava um cheiro cadavérico perfumar de esgoto o ambiente. Sentindo-me subir a náusea, corri até a vidraça para fechá-la e, só então, com o barulho do choque de um vidro ao outro, é que a epifania veio comigo falar. Segundos foram necessários para que o pânico se esvaísse do peito: encontrava-me só e, apesar da estranheza, aquele cômodo me pertencia.
Ninguém tinha me dado o quarto e eu, muito menos, o havia comprado ou alugado. Era meu, apenas isso. Tinha um formato quadrado, apertado; a cama ocupava a posição central, rodeada por várias estantes em que se encontravam velhos brinquedos. Havia de tudo: soldadinhos de chumbo enferrujados, pelúcias rasgadas, aviões quebrados, bois sem patas, macaquinhos sem rabos, bolas de gude rachadas, piões de todos os tamanhos e, principalmente, tabuleiros sem peças e peças sem tabuleiros. Quando criança, nenhum daqueles brinquedos me pertenceu. Assim como o cômodo, não os havia comprado, nem alugado e muito menos os ganhei. Além disso, tinha a impressão de serem velhos demais, de uma época mais antiga que a infância de meu avô.
Desperto pela curiosidade, fui me aproximando das estantes. Era fascinante tocar os objetos e sentir o gelado dos séculos nas pontas dos dedos. Meu nariz começou a coçar pois o pó levantava ao menor movimento. Com um ou outro espirro, fui passando, olhos e dedos, em cada brinquedo ali contido.
Súbito, minha atenção foi para um tabuleiro plantado na estante mais baixa e mais destacada do quarto. Era quadriculado, como o de jogo de damas, apesar de ser três vezes maior que este e de ter diferentes e caóticos níveis de elevação. Numa parte dele havia uma seta indicando o início; no outro extremo, um pequeno circo mostrava ser ali o término do jogo. Um boneco do tamanho de um dedo estava encostado no canto direito do tabuleiro, perto de um estojo cheio de cartas. Eu o apanhei para observar seus detalhes. Era pesado, parecia de ferro, trajando roupas de tecido áspero. Não tinha nenhuma articulação nos membros, o que me fez pensar ter sido fabricado não muito recentemente.
Mirei para o estojo de cartas e apanhei uma. Vi o desenho de um lobo dentuço e rudimentar mordendo um pedaço da Lua. Até o focinho do animal, o papel era todo preto, sem nenhum tipo de detalhe além do traçado branco que formava a fera. Do lado do satélite, ao contrário, havia um céu repleto de planetas e sóis, servindo de teto a uma floresta de pinheiros no solo. No canto direito da imagem, um quadriculado em forma de L indicava a direção a ser tomada no tabuleiro.
Observei atentamente a figura até o momento em que me distraí e deixei o boneco cair em meu pé. A momentânea dor me fez olhar para baixo e reparar em uma fita vermelha que saía debaixo da camisetinha branca do brinquedo. Ao puxá-la, vi um extenso papel se desenrolar, contendo nele, em uma única linha, a seguinte mensagem:
Tabuleiro de Tânatos. Para quantas pessoas desejar. Quem chegar por último ao final, ganha. Se o boneco sair do tabuleiro, ele morre e você está fora. Se o boneco cair de algum degrau, ele também morre e seu jogo acaba.
Tentei posicionar o brinquedo em algum quadrado e o vi cair. Pela regra, estaria eliminado.
Sentei no chão tomado por um profundo tédio. Subitamente, não me foi mais prazeroso tocar e ver aquela quantidade variada de objetos estranhos e quebrados. Tudo aquilo parecia um museu, junto a suas peças muito antigas e o frustrante sentimento que toma o peito, fruto de alguma reflexão que nos diz que em breve nosso próprio mundo se resumirá a uma exposição catalogada em algum canto do futuro.
Ah, o tédio e seus pensamentos motivacionais! Precisava sair dali, urgentemente.
Ao girar a maçaneta, um vento frio cortou meu rosto, expondo a brutal diferença de temperatura entre meu quarto e o mundo. O gelado era-me estranho, sendo eu incapaz de imaginar como sobreviver em um universo tão desconhecido. Respirei fundo, tentando tomar fôlego, mas o ar gélido fez arder meu corpo adentro: sensação insuportável em que única atitude viável era gritar.
Gritei.
Ajoelhei-me e senti um macio no chão. Cruzei os braços em meu corpo, me encolhi o máximo que pude e deitei. Percebi estar em cima de um carpete. Movi, com esforço, a cabeça para cima e vi um extenso corredor; uma senhora elegantemente vestida de branco se aproximava. Sabia estar perfumada, apesar de não conseguir cheirar mais nada. Ao chegar perto, olhou-me com dó, primeiramente, e depois com raiva:
- Mas que imbecil! Como se atreve a sair sem se agasalhar? – começou a revirar a bolsa branca; segundos depois, jogou-me uma blusa preta – Tome, seu idiota, vista isso.
Vendo a dificuldade em me movimentar, a senhora se abaixou e começou a me vestir. Dizia para me acalmar que em breve estaria aquecido. Fechei os olhos fracos e escutei seus passos se distanciando, abafados pelo carpete.
Despertei depois de um tempo totalmente revigorado. O agasalho realmente me aqueceu, dando-me a impressão de estar ainda em meu quarto. Levantei-me e coloquei o capuz, pois sempre me agradou andar com esses adereços na cabeça. Fui até o final do corredor e vi que ele dava para uma escada. Desci, lanço a lanço, até chegar a uma recepção enorme, iluminada por dezenas de lustres e repleta de mulheres trajando casacos de pele e homens vestido à moda Al Capone. Olhei para a bancada e um dos recepcionistas me reconheceu. Cumprimentou-me com um aceno e retribuí.
Senhor Mítia Botas, escutei alguém me chamar.
Virei e vi o homem que a pouco acenou.
- Há um recado para o senhor, Senhor Botas. Veja: seu primo quer encontrá-lo assim que possível. Ele está no Edifício Chinaski, apartamento 1377, décimo terceiro andar.
- Onde é isso, amigo?
- É exatamente aquele prédio que está em frente ao nosso, senhor.
Agradeci-lhe e saí à rua. O Edifício Chinaski possuía inúmeras janelas refletindo tudo o que ocorria ao seu redor. Olhei encantado para aquele espelho do mundo ao ponto de esquecer-me do recado. Foi só com um esbarrão e um xingamento dirigido à minha mãe que despertei do encanto, atravessando as calçadas como um gato a fugir do cão.
Pelo hall de entrada pude ver que o prédio era menos movimentado que o meu. O atendente vestia um elegante terno preto e provavelmente conseguiu o emprego apenas por conta de seu olhar intimidador. Os inquilinos não gostam de receber visitas, pensei, por isso contrataram um vigia ao invés de um recepcionista.
Toquei a campanhinha e depois de um estalo a porta se abriu. Adentrei o quarto de meu primo e o encontrei fumando em uma poltrona com descanso para os pés. Estava completamente careca e vestia um hobby rubro-negro, não esbanjando emoção ao olhar para mim.
Olha só quem finalmente acordou, disse ele.
- Acabei de receber seu recado. Esperou-me por muito tempo?
- Três dias.
- Três dias?
- Sim.
- Ninguém o faz esperar tanto assim.
- Não mesmo. Para sua sorte, o ramo pornográfico cresce mais e mais nessa cidade, de forma que tive reunião atrás de reunião e acabei por me distrair. Fiz bons negócios por aqui, viu? Caso contrário, meu amigo, você pagaria caro, bem caro, por ter feito-me perder tanto tempo.
- Lamento o incômodo, velho.
Passei a vista pelo cômodo. Também era repleto de brinquedos dispostos em estantes, mas estas eram maiores e aqueles estavam inteiros e mais novos. Havia um trenzinho em miniatura com estação e cidade; autorama com uma eterna disputa entre os carros azul, verde e vermelho; uma réplica de Canudos; pelúcias de leões, tigres e ursos; peões; pipas; algumas bonecas; e, mais destacado e muito próximo a poltrona em que meu primo fumava, um Tabuleiro de Tânatos igualzinho ao que tinha em meu quarto. Aproximei-me empolgado com a vista. Notei que o boneco de meu primo estava posicionado no centro-esquerdo do tabuleiro.
Sabe jogar, perguntei extremamente animado.
Olhou-me com indiferença. Puxou um trago e soltou.
- E quem não sabe?
- Eu não sei.
- Confesso que não me espanta ouvir isso de você.
- Não sei fazer nem o boneco parar em pé!
- Há uma manha. É só segura-lo por uns minutos antes de soltá-lo. Se você observar bem, verá que os quadrados são levemente pegajosos – passou o dedo em um; apertou o polegar e o indicador um com o outro – viu bem? Tem de esperar até o pé do boneco colar na casa.
- Entendi. E isto demora?
- Varia de boneco para boneco. Alguns são mais rápidos, outros são extremamente demorados. Eu tenho um amigo que precisa de dezoito minutos para fixar a peça toda vez que faz um movimento. Não sei como tem tanta paciência, por Deus!
Apanhou uma carta do estojo e a olhou atentamente. Deu uma longa tragada, coçou a cabeça careca e alisou os grisalhos bigodes.
Não sabe mesmo a regra do jogo, perguntou-me.
Confirmei minha ignorância.
- É simples, Mítia: você tem de pegar uma carta nesse estojo aqui, a caixa dos Sonhos. Todas as cartas possuem um desenho – que, na verdade, é uma charada - e no canto inferior indicam o movimento que se deve fazer com a peça assim que se desvendar o enigma.
Passou-me a carta a pouco retirada para que eu pudesse analisá-la bem. Nela, um olho chorava em cima de uma asa de anjo.
- Então o objetivo é acertar os enigmas das cartas?
- Sim.
- E como saber se acertou ou não a resposta?
- Pois essa é a graça de tudo: você nunca saberá.
- Desculpe-me, mas não entendi.
- Qual a dúvida?
- Como posso fazer o movimento se não sei se a resposta está certa?
- Depende do jogador. O truque é tentar sentir a resposta: se ela te satisfazer, vá em frente; se não, procure outra.
- Que merda de jogo!
- Eu também achava até jogar pela primeira vez. Por que não tenta?
- Não, obrigado, a vida é curta demais...
Saí irritado do quarto, indagando-me como alguém poderia perder tempo com tão bobas distrações. Tinha muita raiva, pois a falta de objetividade das regras serviu como balde de água fria, tamanha a empolgação que sentia anteriormente, quando ainda reinava em mim o mistério do tabuleiro.
De um quarto, uma criança chupando chupeta me observava. Aproximei-me para fechar a porta e colocá-la para dentro, pois podia adoecer com o choque térmico causado pelo o ar frio. Era uma menininha loira e extremamente linda. Abaixei-me e cumprimentei-a.
Ela não respondeu, apenas continuou a me olhar.
- Qual o seu nome?
Ignorou-me.
Perguntei se sua mãe se encontrava e balançou a cabeça negativamente.
- E o papai, cadê?
Correu poucos metros e apontou para a direita. Pude ver um homem de cabelos negros e barba por fazer fumando um cachimbo enquanto olhava concentradamente para uma carta. Jogava o Tabuleiro. Afastei-me.
Quando, no corredor, percebi todas as portas estarem abertas, me bateu uma estranha certeza do que encontraria caso olhasse atentamente para cada cômodo. Assim foi: quarto por quarto, todos os seus ocupantes olhavam atentamente para uma carta em suas mãos. Meninos, meninas, senhores, jovens mulheres e até famílias inteiras: todos queriam, apenas, desvendar o mistério e mover suas peças para algum lado. Era patético. Desci, andar por andar, fazendo questão de percorrer os extensos corredores do prédio: todas as portas abertas mostravam a mesma cena.
Ao me encontrar de volta à rua, tive um súbito ataque de riso. Gargalhava mais e mais, tendo de me sentar no chão para apertar meus membros e não mijar em minhas roupas. As pessoas passavam ao meu lado dirigindo-me estranhos olhares. Um senhor me jogou algumas moedas, pensando ser eu um louco, enquanto uma velha colocou a mão em minha testa e fez uma fervorosa oração.
Após ouvir o amém, segurei subitamente o braço da senhora e fui com um ar pacífico até o pé de seu ouvido:
- O final, independente de qual caminho pegar ou quantas cartas desvendar, será sempre o circo!
Soltou-se assustada invocando o santo nome de Jesus, mas, sabia eu, ele não ouviria: estava sentando em algum canto do Céu tentando desvendar o enigma do papel retirado da caixa.
Levantei-me querendo retornar ao meu quarto. O cansaço socou minhas pernas e percebi que precisava deitar. Para minha surpresa, no entanto, olhei para o outro lado da rua e meu prédio já não mais se encontrava ali. Observei bem ao meu redor e, sem saber explicar quando, concluí que em algum momento distraí-me e acabei por encontrar uma saída diversa da qual realmente buscava. Decidi, então, contornar o quarteirão.
Na rua, pude ver a parte de trás de meu edifício. Muita gente ia em direção a uma entrada de estilo romano e para lá me dirigi. Próximo a ela, as pessoas começavam a se espremer como a uma boiada: havia mais humanos do que espaço. Uma porta corrida de vidro servia de divisória entre a calçada e o saguão, o qual notei não ser o mesmo que levava ao meu dormitório. Tentei virar para trás, mas o aperto me impediu. Como uma folha em uma forte correnteza, fui eu levado.
Ao entrar no local, percebi se tratar de uma estação com um escadaria que levava a todas as direções. Eu estava no térreo e, ao olhar para cima, vi gente subindo em sentidos variados porque cada degrau se sobrepunha ao outro sem um sentido lógico, podendo-se rumar para leste, noroeste, norte, nordeste a qualquer momento desejado. Cada lanço era cercado por pequenas flores vermelhas de uma espécie que nunca havia visto. Quatrocentos degraus a oeste, pude ver um riacho de águas claras caindo em cascatas. Mirei o céu: não havia lua, estrelas, nem teto para nos abrigar, apenas uma densa negridão. Quem projetou isso, pensei, quis enlouquecer a todos, sem permitir, porém, a possibilidade de aliviar a angústia com um enforcamento.
Bateram em meu ombro e me cumprimentaram. Olhei para o rosto e não o reconheci. Comecei a subir os degraus tentando achar uma saída para o meu quarto com uma estranha certeza do esforço ser vão.
Quanto mais alto eu estava, mais comum era alguém que eu jamais conheci vir falar comigo, cumprimentando-me e chamando-me pelo nome. Já cansado, decidi apertar o capuz para expor o mínimo do meu rosto.
Não adiantará, Mítia, alertou-me uma colega.
- Jú?
- Sim!
- O que você faz aqui?
- Estou indo para a faculdade.
- Ah, sim. Está cursando outra?
- Não, é a mesma, mas ainda não a terminei. Preciso ir, estou atrasada.
Sumiu.
Ainda cansado, parei em um lanço um pouco maior que o comum. Ao olhar para frente, vi que era cortado por uma rua onde estava estacionada uma perua escolar. Atrás dela, a escadaria continuava a subir.
Uma moça beijou meu rosto. Usava calça e blusa jeans, segurando cadernos e livros entre os braços.
- Finalmente chegou!
Mirei fixamente seus olhos e concluí não imaginar quem era.
- Aonde vai?
- Para a faculdade. Eu te esperava para irmos lado a lado na van.
- Acho que não irei para a aula hoje, querida.
- Pois deveria, todos sentem sua falta.
Um grupo de sete pessoas nos rodeou. A mulher virou-se de costas e a abracei por trás. Todos tentavam me convencer a ir para a universidade.
Lá embaixo, a entrada de estilo romano estava minúscula, dando a impressão de caber na palma da mão. Pessoas por lá entravam como caem os pingos de água em chuva de verão. A moça me beijou nos lábios, estávamos sós.
- Vamos embora?
Balancei a cabeça afirmativamente. Dei as costas a ela e comecei a descer.
- Aonde vai?
- Para lá.
- Para o fundo?
- Sim, para o fundo.
Não olhei para trás. Precisava voltar ao meu quarto.
Ninguém tinha me dado o quarto e eu, muito menos, o havia comprado ou alugado. Era meu, apenas isso. Tinha um formato quadrado, apertado; a cama ocupava a posição central, rodeada por várias estantes em que se encontravam velhos brinquedos. Havia de tudo: soldadinhos de chumbo enferrujados, pelúcias rasgadas, aviões quebrados, bois sem patas, macaquinhos sem rabos, bolas de gude rachadas, piões de todos os tamanhos e, principalmente, tabuleiros sem peças e peças sem tabuleiros. Quando criança, nenhum daqueles brinquedos me pertenceu. Assim como o cômodo, não os havia comprado, nem alugado e muito menos os ganhei. Além disso, tinha a impressão de serem velhos demais, de uma época mais antiga que a infância de meu avô.
Desperto pela curiosidade, fui me aproximando das estantes. Era fascinante tocar os objetos e sentir o gelado dos séculos nas pontas dos dedos. Meu nariz começou a coçar pois o pó levantava ao menor movimento. Com um ou outro espirro, fui passando, olhos e dedos, em cada brinquedo ali contido.
Súbito, minha atenção foi para um tabuleiro plantado na estante mais baixa e mais destacada do quarto. Era quadriculado, como o de jogo de damas, apesar de ser três vezes maior que este e de ter diferentes e caóticos níveis de elevação. Numa parte dele havia uma seta indicando o início; no outro extremo, um pequeno circo mostrava ser ali o término do jogo. Um boneco do tamanho de um dedo estava encostado no canto direito do tabuleiro, perto de um estojo cheio de cartas. Eu o apanhei para observar seus detalhes. Era pesado, parecia de ferro, trajando roupas de tecido áspero. Não tinha nenhuma articulação nos membros, o que me fez pensar ter sido fabricado não muito recentemente.
Mirei para o estojo de cartas e apanhei uma. Vi o desenho de um lobo dentuço e rudimentar mordendo um pedaço da Lua. Até o focinho do animal, o papel era todo preto, sem nenhum tipo de detalhe além do traçado branco que formava a fera. Do lado do satélite, ao contrário, havia um céu repleto de planetas e sóis, servindo de teto a uma floresta de pinheiros no solo. No canto direito da imagem, um quadriculado em forma de L indicava a direção a ser tomada no tabuleiro.
Observei atentamente a figura até o momento em que me distraí e deixei o boneco cair em meu pé. A momentânea dor me fez olhar para baixo e reparar em uma fita vermelha que saía debaixo da camisetinha branca do brinquedo. Ao puxá-la, vi um extenso papel se desenrolar, contendo nele, em uma única linha, a seguinte mensagem:
Tabuleiro de Tânatos. Para quantas pessoas desejar. Quem chegar por último ao final, ganha. Se o boneco sair do tabuleiro, ele morre e você está fora. Se o boneco cair de algum degrau, ele também morre e seu jogo acaba.
Tentei posicionar o brinquedo em algum quadrado e o vi cair. Pela regra, estaria eliminado.
Sentei no chão tomado por um profundo tédio. Subitamente, não me foi mais prazeroso tocar e ver aquela quantidade variada de objetos estranhos e quebrados. Tudo aquilo parecia um museu, junto a suas peças muito antigas e o frustrante sentimento que toma o peito, fruto de alguma reflexão que nos diz que em breve nosso próprio mundo se resumirá a uma exposição catalogada em algum canto do futuro.
Ah, o tédio e seus pensamentos motivacionais! Precisava sair dali, urgentemente.
Ao girar a maçaneta, um vento frio cortou meu rosto, expondo a brutal diferença de temperatura entre meu quarto e o mundo. O gelado era-me estranho, sendo eu incapaz de imaginar como sobreviver em um universo tão desconhecido. Respirei fundo, tentando tomar fôlego, mas o ar gélido fez arder meu corpo adentro: sensação insuportável em que única atitude viável era gritar.
Gritei.
Ajoelhei-me e senti um macio no chão. Cruzei os braços em meu corpo, me encolhi o máximo que pude e deitei. Percebi estar em cima de um carpete. Movi, com esforço, a cabeça para cima e vi um extenso corredor; uma senhora elegantemente vestida de branco se aproximava. Sabia estar perfumada, apesar de não conseguir cheirar mais nada. Ao chegar perto, olhou-me com dó, primeiramente, e depois com raiva:
- Mas que imbecil! Como se atreve a sair sem se agasalhar? – começou a revirar a bolsa branca; segundos depois, jogou-me uma blusa preta – Tome, seu idiota, vista isso.
Vendo a dificuldade em me movimentar, a senhora se abaixou e começou a me vestir. Dizia para me acalmar que em breve estaria aquecido. Fechei os olhos fracos e escutei seus passos se distanciando, abafados pelo carpete.
Despertei depois de um tempo totalmente revigorado. O agasalho realmente me aqueceu, dando-me a impressão de estar ainda em meu quarto. Levantei-me e coloquei o capuz, pois sempre me agradou andar com esses adereços na cabeça. Fui até o final do corredor e vi que ele dava para uma escada. Desci, lanço a lanço, até chegar a uma recepção enorme, iluminada por dezenas de lustres e repleta de mulheres trajando casacos de pele e homens vestido à moda Al Capone. Olhei para a bancada e um dos recepcionistas me reconheceu. Cumprimentou-me com um aceno e retribuí.
Senhor Mítia Botas, escutei alguém me chamar.
Virei e vi o homem que a pouco acenou.
- Há um recado para o senhor, Senhor Botas. Veja: seu primo quer encontrá-lo assim que possível. Ele está no Edifício Chinaski, apartamento 1377, décimo terceiro andar.
- Onde é isso, amigo?
- É exatamente aquele prédio que está em frente ao nosso, senhor.
Agradeci-lhe e saí à rua. O Edifício Chinaski possuía inúmeras janelas refletindo tudo o que ocorria ao seu redor. Olhei encantado para aquele espelho do mundo ao ponto de esquecer-me do recado. Foi só com um esbarrão e um xingamento dirigido à minha mãe que despertei do encanto, atravessando as calçadas como um gato a fugir do cão.
Pelo hall de entrada pude ver que o prédio era menos movimentado que o meu. O atendente vestia um elegante terno preto e provavelmente conseguiu o emprego apenas por conta de seu olhar intimidador. Os inquilinos não gostam de receber visitas, pensei, por isso contrataram um vigia ao invés de um recepcionista.
Toquei a campanhinha e depois de um estalo a porta se abriu. Adentrei o quarto de meu primo e o encontrei fumando em uma poltrona com descanso para os pés. Estava completamente careca e vestia um hobby rubro-negro, não esbanjando emoção ao olhar para mim.
Olha só quem finalmente acordou, disse ele.
- Acabei de receber seu recado. Esperou-me por muito tempo?
- Três dias.
- Três dias?
- Sim.
- Ninguém o faz esperar tanto assim.
- Não mesmo. Para sua sorte, o ramo pornográfico cresce mais e mais nessa cidade, de forma que tive reunião atrás de reunião e acabei por me distrair. Fiz bons negócios por aqui, viu? Caso contrário, meu amigo, você pagaria caro, bem caro, por ter feito-me perder tanto tempo.
- Lamento o incômodo, velho.
Passei a vista pelo cômodo. Também era repleto de brinquedos dispostos em estantes, mas estas eram maiores e aqueles estavam inteiros e mais novos. Havia um trenzinho em miniatura com estação e cidade; autorama com uma eterna disputa entre os carros azul, verde e vermelho; uma réplica de Canudos; pelúcias de leões, tigres e ursos; peões; pipas; algumas bonecas; e, mais destacado e muito próximo a poltrona em que meu primo fumava, um Tabuleiro de Tânatos igualzinho ao que tinha em meu quarto. Aproximei-me empolgado com a vista. Notei que o boneco de meu primo estava posicionado no centro-esquerdo do tabuleiro.
Sabe jogar, perguntei extremamente animado.
Olhou-me com indiferença. Puxou um trago e soltou.
- E quem não sabe?
- Eu não sei.
- Confesso que não me espanta ouvir isso de você.
- Não sei fazer nem o boneco parar em pé!
- Há uma manha. É só segura-lo por uns minutos antes de soltá-lo. Se você observar bem, verá que os quadrados são levemente pegajosos – passou o dedo em um; apertou o polegar e o indicador um com o outro – viu bem? Tem de esperar até o pé do boneco colar na casa.
- Entendi. E isto demora?
- Varia de boneco para boneco. Alguns são mais rápidos, outros são extremamente demorados. Eu tenho um amigo que precisa de dezoito minutos para fixar a peça toda vez que faz um movimento. Não sei como tem tanta paciência, por Deus!
Apanhou uma carta do estojo e a olhou atentamente. Deu uma longa tragada, coçou a cabeça careca e alisou os grisalhos bigodes.
Não sabe mesmo a regra do jogo, perguntou-me.
Confirmei minha ignorância.
- É simples, Mítia: você tem de pegar uma carta nesse estojo aqui, a caixa dos Sonhos. Todas as cartas possuem um desenho – que, na verdade, é uma charada - e no canto inferior indicam o movimento que se deve fazer com a peça assim que se desvendar o enigma.
Passou-me a carta a pouco retirada para que eu pudesse analisá-la bem. Nela, um olho chorava em cima de uma asa de anjo.
- Então o objetivo é acertar os enigmas das cartas?
- Sim.
- E como saber se acertou ou não a resposta?
- Pois essa é a graça de tudo: você nunca saberá.
- Desculpe-me, mas não entendi.
- Qual a dúvida?
- Como posso fazer o movimento se não sei se a resposta está certa?
- Depende do jogador. O truque é tentar sentir a resposta: se ela te satisfazer, vá em frente; se não, procure outra.
- Que merda de jogo!
- Eu também achava até jogar pela primeira vez. Por que não tenta?
- Não, obrigado, a vida é curta demais...
Saí irritado do quarto, indagando-me como alguém poderia perder tempo com tão bobas distrações. Tinha muita raiva, pois a falta de objetividade das regras serviu como balde de água fria, tamanha a empolgação que sentia anteriormente, quando ainda reinava em mim o mistério do tabuleiro.
De um quarto, uma criança chupando chupeta me observava. Aproximei-me para fechar a porta e colocá-la para dentro, pois podia adoecer com o choque térmico causado pelo o ar frio. Era uma menininha loira e extremamente linda. Abaixei-me e cumprimentei-a.
Ela não respondeu, apenas continuou a me olhar.
- Qual o seu nome?
Ignorou-me.
Perguntei se sua mãe se encontrava e balançou a cabeça negativamente.
- E o papai, cadê?
Correu poucos metros e apontou para a direita. Pude ver um homem de cabelos negros e barba por fazer fumando um cachimbo enquanto olhava concentradamente para uma carta. Jogava o Tabuleiro. Afastei-me.
Quando, no corredor, percebi todas as portas estarem abertas, me bateu uma estranha certeza do que encontraria caso olhasse atentamente para cada cômodo. Assim foi: quarto por quarto, todos os seus ocupantes olhavam atentamente para uma carta em suas mãos. Meninos, meninas, senhores, jovens mulheres e até famílias inteiras: todos queriam, apenas, desvendar o mistério e mover suas peças para algum lado. Era patético. Desci, andar por andar, fazendo questão de percorrer os extensos corredores do prédio: todas as portas abertas mostravam a mesma cena.
Ao me encontrar de volta à rua, tive um súbito ataque de riso. Gargalhava mais e mais, tendo de me sentar no chão para apertar meus membros e não mijar em minhas roupas. As pessoas passavam ao meu lado dirigindo-me estranhos olhares. Um senhor me jogou algumas moedas, pensando ser eu um louco, enquanto uma velha colocou a mão em minha testa e fez uma fervorosa oração.
Após ouvir o amém, segurei subitamente o braço da senhora e fui com um ar pacífico até o pé de seu ouvido:
- O final, independente de qual caminho pegar ou quantas cartas desvendar, será sempre o circo!
Soltou-se assustada invocando o santo nome de Jesus, mas, sabia eu, ele não ouviria: estava sentando em algum canto do Céu tentando desvendar o enigma do papel retirado da caixa.
Levantei-me querendo retornar ao meu quarto. O cansaço socou minhas pernas e percebi que precisava deitar. Para minha surpresa, no entanto, olhei para o outro lado da rua e meu prédio já não mais se encontrava ali. Observei bem ao meu redor e, sem saber explicar quando, concluí que em algum momento distraí-me e acabei por encontrar uma saída diversa da qual realmente buscava. Decidi, então, contornar o quarteirão.
Na rua, pude ver a parte de trás de meu edifício. Muita gente ia em direção a uma entrada de estilo romano e para lá me dirigi. Próximo a ela, as pessoas começavam a se espremer como a uma boiada: havia mais humanos do que espaço. Uma porta corrida de vidro servia de divisória entre a calçada e o saguão, o qual notei não ser o mesmo que levava ao meu dormitório. Tentei virar para trás, mas o aperto me impediu. Como uma folha em uma forte correnteza, fui eu levado.
Ao entrar no local, percebi se tratar de uma estação com um escadaria que levava a todas as direções. Eu estava no térreo e, ao olhar para cima, vi gente subindo em sentidos variados porque cada degrau se sobrepunha ao outro sem um sentido lógico, podendo-se rumar para leste, noroeste, norte, nordeste a qualquer momento desejado. Cada lanço era cercado por pequenas flores vermelhas de uma espécie que nunca havia visto. Quatrocentos degraus a oeste, pude ver um riacho de águas claras caindo em cascatas. Mirei o céu: não havia lua, estrelas, nem teto para nos abrigar, apenas uma densa negridão. Quem projetou isso, pensei, quis enlouquecer a todos, sem permitir, porém, a possibilidade de aliviar a angústia com um enforcamento.
Bateram em meu ombro e me cumprimentaram. Olhei para o rosto e não o reconheci. Comecei a subir os degraus tentando achar uma saída para o meu quarto com uma estranha certeza do esforço ser vão.
Quanto mais alto eu estava, mais comum era alguém que eu jamais conheci vir falar comigo, cumprimentando-me e chamando-me pelo nome. Já cansado, decidi apertar o capuz para expor o mínimo do meu rosto.
Não adiantará, Mítia, alertou-me uma colega.
- Jú?
- Sim!
- O que você faz aqui?
- Estou indo para a faculdade.
- Ah, sim. Está cursando outra?
- Não, é a mesma, mas ainda não a terminei. Preciso ir, estou atrasada.
Sumiu.
Ainda cansado, parei em um lanço um pouco maior que o comum. Ao olhar para frente, vi que era cortado por uma rua onde estava estacionada uma perua escolar. Atrás dela, a escadaria continuava a subir.
Uma moça beijou meu rosto. Usava calça e blusa jeans, segurando cadernos e livros entre os braços.
- Finalmente chegou!
Mirei fixamente seus olhos e concluí não imaginar quem era.
- Aonde vai?
- Para a faculdade. Eu te esperava para irmos lado a lado na van.
- Acho que não irei para a aula hoje, querida.
- Pois deveria, todos sentem sua falta.
Um grupo de sete pessoas nos rodeou. A mulher virou-se de costas e a abracei por trás. Todos tentavam me convencer a ir para a universidade.
Lá embaixo, a entrada de estilo romano estava minúscula, dando a impressão de caber na palma da mão. Pessoas por lá entravam como caem os pingos de água em chuva de verão. A moça me beijou nos lábios, estávamos sós.
- Vamos embora?
Balancei a cabeça afirmativamente. Dei as costas a ela e comecei a descer.
- Aonde vai?
- Para lá.
- Para o fundo?
- Sim, para o fundo.
Não olhei para trás. Precisava voltar ao meu quarto.
Dá uma certa inveja de alguém que escreve dessa forma...que imagina, inventa, desmembra, sublima e/ou realiza certas idéias quando colocadas em palavras. Que bacana, Gu. É isso! A tua vida é essa, você nasceu pra isso.
ResponderExcluireu senti frio lendo o texto.
ResponderExcluirsinto ser pela alta quantidade de descrições e poucas ações efetivas, da impressão de ele está sempre caminhando e que é devagar e que os lugares são grandes. dai senti o vento.
não gosto muito de fazer isso mas, e esse toque de felisberto hernandez ai? senti uma grande presença nesse campo vasto. é meio surreal.. me lembrou esse quadro: http://j.mp/aXGG17
(que é dum movimento chamado Pintura Metafisica)
no mais a historia esta relamente bem fluida, o que é bem importante prum texto dessa dimensão. só acho que existem alguns pontos de tensão que são resolvidos de forma normal, quase passam batidos e que poderiam tomar uma proporção um pouco maior, mas sem exagerar, claro. Tipo, frases e sacadas que ficariam mais presentes quando terminássemos de ler o texto..
e tem uma coisa pra corrigir acho:
"Depende do jogador. O truque é tentar sentir a resposta: se ela te satisfazer..."
acho que "se ela te satisfizer"
Sempre com um toque de mitologia seus textos né? Eu ainda não consigo ter uma opinião sobre esse conto, estou meio perdida. As vezes me parece uma metáfora da vida, as vezes me lembra Jumanji..rs
ResponderExcluirDe qualquer maneira, gosto muito da construção dessas frases:
"...expondo a brutal diferença de temperatura entre meu quarto e o mundo."
"Era fascinante tocar os objetos e sentir o gelado dos séculos nas pontas dos dedos."
"O gelado era-me estranho, sendo eu incapaz de imaginar como sobreviver em um universo tão desconhecido."
"Ah, o tédio e seus pensamentos motivacionais!"