Um dia especial (ou um dia qualquer)

Acordou mais cedo, mas custou a levantar. Sentia um misto de uma tola esperança ansiosa e a amarga certeza da realidade. Por fim, levantou. A esposa nem lhe deu bom dia, enquanto ele comia devagar e tomava o café. “Sempre essa moleza”, ela disse, “Vai logo, a gente vai se atrasar”. No andar de cima, as filhas ainda dormiam.
A esperança ansiosa diminuía a cada passo que dava, sendo totalmente substituída pela certeza da realidade: nada de diferente, o mesmo trânsito, o mesmo cansaço, o mesmo mau humor. Deu bom dia para os funcionários e foi da colega, de quem nem gostava tanto assim, que recebeu o primeiro “Parabéns”, e logo em seguida, “você trouxe bolo?”. (Afinal, pedir o bolo direto seria excesso de sinceridade e falta de educação).
O resto do dia transcorreu normal e sentia-se até envergonhado por ter, horas antes, pensado que seria diferente. Riu de si mesmo, pois ano após ano ele confirmava que nada mudaria: era apenas mais um dia.
Voltou para casa, foi o último a sair da empresa. Disse que precisava terminar relatórios urgentes, mas, quando se viu sozinho, jogou paciência até às 19h27. Resolveu que estava na hora de voltar. Ele só queria que o dia acabasse.
Chegou em casa e jantou. Sozinho. A esposa preferia a companhia da televisão e ele, a solidão. A filha número um chegou em casa e resmungou um “voltei”. Ela preferia a companhia do computador, então fez um prato e comeu enquanto falava para a amiga, via MSN, que se sentia sozinha e que não tinha com quem conversar.
A filha número dois chegou tarde, como sempre. Ele sentiu-se melhor, pois sabia que o dia estava acabando e poderia dormir, fingir que foi apenas mais um dia normal, como todos os anos anteriores. Mas a filha número dois estragou tudo quando lhe deu um abraço, sincero mas desajeitado, e disse “Parabéns!”.
Ele sentiu-se feliz, mas triste. O abraço desajeitado fez com que a máscara da indiferença lhe caísse do rosto, e ele teve que sorrir (ainda se lembrava vagamente de como fazer isso). Deitou-se na cama mais cedo do que o normal, a esposa veio perguntar-lhe se ele estava com gripe.
Encorajado pelo abraço e sem a proteção de sua máscara, ele murmurou entre dentes: “Você sabe que dia é hoje?”. Ela parou e pensou, respondeu alto, já preparada para brigar (apesar da pergunta banal, o tom de voz dele a incomodara). Ela disse: “Quarta-feira, por quê?”.
Ele sorriu sem estar feliz (isso ele sabia bem como fazer) e disse: “É meu aniversário”.
Pelo silêncio que se fez, poderíamos imaginar que se abraçaram e que ela pedia desculpas por esquecer. É o cansaço do dia-a-dia que acaba minando da vida de um casal o companheirismo e a memória de antes. Mas não, ela estava procurando o chinelo e disse apenas, mais para si do que ao marido, “vou lavar a louça”.
Ele dormiu, a máscara da indiferença recolocada em seu rosto. Era assim que tinha que ser, e sentiu-se mais confortável com aquilo, a que já estava acostumado, do que com o abraço da filha número dois. Resolveu que no ano seguinte, em seu aniversário, iria dormir mais cedo, fingindo gripe ou indisposição, para não ter de encontrar no dia a filha número dois.
Enquanto isso, no quarto ao lado, a filha número dois ouvira aquele diálogo insólito e entendeu tudo na mesma hora. Reprimiu uma dor e uma lágrima (ela sempre fora desnessariamente sensível) e preferia não ter ouvido nada. Resolveu que no ano seguinte, naquele mesmo dia, iria chegar mais tarde.

Comentários

  1. Sabe o que é engraçado? Eu acho aniversário uma das comemorações mais idiotas que tem, mas, mesmo assim, não consegui deixar de ficar triste pelo cara. Sério. Cheguei a sentir um pouco de angústia pela vida um tanto quanto sem controle, banal, cheia de indiferença do aniversariante, talvez pelo estilo simples e direto do texto... Muito bom mesmo! Gosto de textos assim, que me fazem sentir.

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  2. Sabe o que é engraçado? Eu acho aniversário uma das comemorações mais idiotas que tem, mas, mesmo assim, não consegui deixar de ficar triste pelo cara. Sério. Cheguei a sentir um pouco de angústia pela vida um tanto quanto sem controle, banal, cheia de indiferença do aniversariante, talvez pelo estilo simples e direto do texto... Muito bom mesmo! Gosto de textos assim, que me fazem sentir. [2]

    o gustavo falou tudo o que pensei.talvez por quê as nossas máscaras da indiferença ainda não estejam tão bem amarradas assim.

    mas a minha filofia-de-boteco para isso tudo é a auto-afirmação de que eu prefiro que esse dia seja triste e não fazer nada pra que seja um dia especial (e assim baixar as expectativas) e tentar fazer com que todo o restante seja bom.


    (SPOILER)
    "Deu bom dia para os funcionários e foi da colega, de quem nem gostava tanto assim, que recebeu o primeiro “Parabéns”, e logo em seguida, “você trouxe bolo?”. (Afinal, pedir o bolo direto seria excesso de sinceridade e falta de educacação)."
    melhor parágrafo.

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  3. Gostei! A indiferença reina muito hoje em dia e é bom relatar como as relações homanas estão cada vez mais distantes e frias. Eu gosto mesmo é de bolo, parabéns e tudo mais que tiver direito. É muito bom celebrar a vida! Vou visitar sempre! Att Aline

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  4. relações humanas. desculpe depois que notei o erro

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