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O cupido (ou o ato em vão)

Apesar de ter uma pequena deficiência que não permitia a Pepe acompanhar os meninos de sua idade na escola, meu irmão era bastante inteligente. Fanático por leitura, subia toda tarde até a biblioteca do pai, pegava o livro de mitologia grega e lia e relia até o jantar. Aproximando-se o carnaval, logo anunciou a todos: - Quero ir de cupido. Fácil, o cabelo louro e encaracolado já lhe dava a cara angelical, bastando apenas arrumar um tecido para enrolar no corpo e umas sandálias. Minha avó cuidou de todo o vestuário: comprou o calçado na feira; pegou uma velha cortina branca e, com sua tesoura e máquina, fez um tipo de vestidinho que lembrou bem os tempos antigos. No jantar, Pepe irritou-se: - E as flechas? - Quais flechas? - Do Cupido! Eu não serei o Cupido? Pois bem, ele tem flechas e um arco também! É mesmo, tinha razão. Meu avô, então, foi a uma loja na manhã seguinte e comprou um brinquedo de plástico vagabundo. Na noite de Carnaval, bateram na porta do quarto. Leve seu irmão ao bai

fuso horário (ou a pausa significativa dessas horas em tão pouco tempo)

já te amanhece aí e aqui ainda é ontem. enquanto tento apagar o pouco do meu hoje, você já está começando um outro dia, e o seu ontem- que é ainda onde estou e até mais longe- você já não se lembra mais. dois compassos em tempos errados. já te anoitece aí e aqui agora é dia. hoje. se eu te conto desse meu hoje, meu presente, o que me passa agora chega pra você em forma de futuro, o seu presente acontece no meu futuro e assim, tudo fica cada vez mais distante de mim. tudo que me disse ontem ficou como lembrança dentro do meu dia de ontem. mas pra você ainda era hoje, e enquanto eu interpretava como lembrança, pra você era o instante. enquanto eu interpretava como instante para você era uma chance no futuro. quando entendi como uma chance, já não estávamos no mesmo futuro, já era tarde demais, e voltou a ser lembrança. sem compasso. já me chegou amanhã, já deixou de ser ontem mas não o bastante para alcançar o seu presente (já são duas noites de diferença) por mais que eu tente acelerar

Um dia especial (ou um dia qualquer)

Acordou mais cedo, mas custou a levantar. Sentia um misto de uma tola esperança ansiosa e a amarga certeza da realidade. Por fim, levantou. A esposa nem lhe deu bom dia, enquanto ele comia devagar e tomava o café. “Sempre essa moleza”, ela disse, “Vai logo, a gente vai se atrasar”. No andar de cima, as filhas ainda dormiam. A esperança ansiosa diminuía a cada passo que dava, sendo totalmente substituída pela certeza da realidade: nada de diferente, o mesmo trânsito, o mesmo cansaço, o mesmo mau humor. Deu bom dia para os funcionários e foi da colega, de quem nem gostava tanto assim, que recebeu o primeiro “Parabéns”, e logo em seguida, “você trouxe bolo?”. (Afinal, pedir o bolo direto seria excesso de sinceridade e falta de educação). O resto do dia transcorreu normal e sentia-se até envergonhado por ter, horas antes, pensado que seria diferente. Riu de si mesmo, pois ano após ano ele confirmava que nada mudaria: era apenas mais um dia. Voltou para casa, foi o último a sair da empresa.

Fotografias modernas (ou abecedário de histórias que ouvi bebendo sozinho na Praça da Bicota)

André queria se matar. Subiu até o último andar de seu prédio, olhou para baixo e desistiu: tinha medo de altura Bianca odiava o trânsito, seu trabalho, sua cidade e até mesmo seu país, mas sentia-se a pessoa mais feliz do mundo quando a cachorra lambia seu rosto todo dia de manhã Carlos ficou muito triste quando percebeu que faltava naturalidade nas pessoas. Teve esse insight no terceiro ano vivendo numa comunidade naturalista Daniela queria um amor; e recusou todos os amores que apareceram porque não era aquele que queria Elías julgava-se o mais tolo dos tolos; por isso, decidiu virar poeta Farías descobriu qual era a maior hipocrisia do mundo quando levantou o dedo para chamar seu irmão de hipócrita. Gustavo estava deprimido porque não tinha o que fazer. Escreveu, terminou e viu que nada adiantou: concluiu sua tarefa e veio novamente a melancolia. Hiago achava as noites de São Paulo muito tristes. Numa delas, conheceu Iara e tornou-se o mais feliz dos homens. Jorge sonhava em ser p

elefantes (ou o tamanho de deus)

menos zero -0 o espetáculo dos elefantes havia sido na semana anterior, porém, era dificil de esquecê-los. o cheiro de estrume ainda rondava o ambiente e o vazio que a ausência deles deixava era quase maior que os próprios animais. todos tiveram a oportunidade de vê-los na sala de estar, camuflados na cortina; no banheiro, escondidos na banheira; no quarto, dentro do armário das camisas. em meio a brindes e copos vazios todos sorriam com a alegria e a elegância do olhar triste e desengonçado dos elefantes. havia cor, muita cor, vermelhos intensos, padrões verdes sobre verde, listras azuis-marinho e brancas. e todos tinham acesso a pincéis e tintas. alguns estavam ali para admirar, outros queriam sentir o prazer dos pincéis feitos com pêlos de orelha de boi passando sobre a pele enrugada e cheia de nostalgia dos elefantes. porém, sempre havia aqueles que traziam suas facas de casa e, entre uma conversa e outra, no escuro do ambiente, raspavam pedaços de marfim para depois usarem a metáf

O poeta (ou os efeitos colaterais do amor; ou, ainda, tentando entender a lógica da loucura)

Eu nunca o entendi muito bem. Talvez por isso soubesse, em meu íntimo, que não podia passar idéias suficientemente sérias em sua cabeça para que seus desejos fossem realizados. Tomava minha cerveja vendo o Brasil perder para a Holanda quando a campanhinha tocou. Tinha finalmente um plano. - Plano de que, Ibarra? - Eliza. Finalmente bolei algo para que ela nunca mais me esqueça! Era o amor não correspondido dele. De rosto era linda, mas o corpo magro demais lhe dava um aspecto de tísica. Se conheceram por minha causa: eu namorava uma amiga de infância dela e, por mero acaso, meu carro quebrou no meio da rua num dia em que dava carona a Ibarra. Estávamos perto da casa da minha ex e, como chovia, achei melhor visitá-la enquanto o guincho não vinha. Eliza estava lá e nunca mais saiu do coração de meu amigo, mesmo tendo sido rejeitado três vezes. Esqueça essa Eliza, eu lhe disse irritado com o jogo. - Não, meu velho, isso é impossível! Confie em mim: tenho certeza de que d

Arquivo #1 (ou o título verdadeiro e a essência de tudo estão escondidos. Mas, de repente, você poderá vê-los em itálico)

Em um mundo onde reinava o trivial, um resquício de amor ainda vivia no coração de Nicole que, ao ver seu antigo homem entregue aos lábios de outra, chorou. A ela, tudo fora tão bom, tão intenso e confortável que até acreditou na eternidade daquelas sensações. Que mulher tola: havia já chegado o momento em que pessoas não se amavam mais, ao contrário, consumiam-se. Pegou sua bolsa, pagou a conta e sem se despedir dos amigos foi-se embora do bar. Na esquina, em frente ao seu carro, um jovem bêbado – um bosta, como se auto-intitulava – bebia sentado na calçada, escorado na mureta como se fosse a única coisa no mundo a oferecer-lhe apoio. Levou a garrafa de cerveja à boca e deu um gole fitando a mulher que, assustada – pois tempos de violência nos fazem temer que nos furtem até o coração – dirigiu-se ao seu veículo. Assim que destravou a porta do carro, viu o homem se levantar. Encararam-se. Em silêncio, o rapaz foi se aproximando, devagar. Notava-se que não era da rua e que em seus olhos